quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Narrare et descreuere

Caros Leitores e Amadas Leitoras, publico aqui um conto meu, recentíssimo, para a vossa apreciação: ei-lo!

Narrar ou descrever?

Glauber Machado

A sala estava repleta. Todos esperavam o professor. Vários grupos discutiam banalidades, efemeridades, pontualidades e atividades. Havia um retro projetor em frente à mesa do mestre ausente. Uma loira, de cabelos longos e lisos, reclinou sua cabeça ao ombro de uma outra mulher, de cabelos morenos e encaracolados, também longos. As duas estavam na primeira fileira da classe, em frente ao retro projetor. Ao lado da morena, estava um homem, mediano, cabelos castanhos, relendo uma apostila toda marcada de uma letra que não lhe pertencia. Do lado da loira, havia outra loira, de tez clara e trajava um vestido azul. Atrás das duas loiras estava um homem franzino, com cara de moleque, atento à conversa de sua companheira, uma ruiva, alta. Perto da janela, um grande grupo conversava, liderado por um cara alto, com cara de mal-humorado, com uma jaqueta jeans. Estava frio lá fora e quente dentro da sala.
Chega um senhor, franzino, careca, carregando vários livros. A classe aos poucos vai se silenciando. O professor pára no corredor da sala para atender uma aluna franzina, cheia de espinhas, quase uma Macabéa. As duas mulheres, a morena e a loira de cabelos longos trocam um beijo apaixonado antes do professor chegar à sua mesa. O professor cumprimenta a classe e começa a sua aula sobre o narrar ou o descrever de autoria de um cara de nome meio estranho, acho que é Lucas, Luckács, ou pode ser Lucacks. A voz do professor era grossa e monocórdica, uníssona, como as conversas paralelas provenientes do fundo da sala.
O professor, com sua caligrafia médica, escreve na lousa “narração versus descrição”. Um bilhete dobrado, endereçado à morena de cabelos longos da primeira fileira, passa do fundo da sala até chegar ao homem de cabelos castanhos. O professor retira o retro projetor de frente à sua mesa e encosta-o no canto. A loira reclina sua cabeça novamente ao ombro da morena. O homem de cabelos castanhos passa o bilhete à loira de cabelos longos. Outro bilhete vem do fundo da sala. A loira apoiada no ombro da morena presta atenção à aula e não liga para o bilhete. A morena escreve algo no bilhete e devolve ao homem de cabelos castanhos. O outro bilhete que passava chegou ao cara de jaqueta com cara de que chupou um saco de limão azedo. O homem franzino, atrás das loiras, escreve algo em seu caderno. O professor começa a pontuar as diferenças entre narrar e descrever. O homem de jaqueta com cara de que comeu e não gostou escreve algo no bilhete e o remete ao homem franzino e à ruiva, que era sua companheira de aula. A narração é sumário enquanto a descrição é cena. O homem franzino ri ao ler o bilhete e o repassa para a loira de vestido azul. Mais uma vez o homem de cabelos castanhos passa um bilhete para a morena e esta responde. A loira de cabelos longos estranha o tanto de bilhetes que vão e vem da morena, sua namorada, para o homem de cabelos castanhos. A “Macabéa” faz uma pergunta esdrúxula confirmando o que o professor acabara de dizer. O professor responde que se ela prestasse atenção no que ele explanava, perceberia que ele acabou de falar isso. O fundo deu algumas risadas, e alguns alunos olhavam regozijados com a resposta que dera o professor, enquanto outros passaram vergonha pelo alheio. A loira de vestido azul abriu o bilhete. A loira que estava ao lado leu o bilhete que recebeu a outra loira. O homem franzino soltou uma pequena exclamação, inaudível. O professor fala que o principal ponto da aula chegara.
A loira de cabelos longos dá um tapa barulhento e estralado na cara da morena. A classe emite alguns ruídos, tanto de indignação, quando de “o quê?’. O professor olha as duas paralisado, transtornado. “Vagabunda, safada!” diz a loira para a morena. A morena se levanta: “Corna!”. A loira se levanta e dá mais um tapa na cara da morena. A morena revida. O professor pede calma. A loira puxa o cabelo da morena, que dá um tapa na cara da loira. A loira arranha o braço da morena. O homem de cabelos castanhos tenta tirar a morena da briga. A rinha estava formada. Alguns se levantam para separar as duas em briga. A morena de cabelos longos sai da sala acompanhada pelo homem de cabelos castanhos. A loira sai atrás. Guardo o meu material. Rompeu-se a aula, rompeu-se a explicação, rompeu-se a compreensão, rompeu-se! E cada qual foi ao seu canto.
Espero que gostem! Foi publicado originalmente no Coletivo Mário de Andrade. Só acessar aí no linquorum! Até mais!

Um comentário:

Felipe disse...

já fiz um comentário no coletivo...